
Em 2023, uma pequena parte das peças premiadas em Cannes usaram inteligência artificial no processo criativo. No ano seguinte, esse número disparou: 2024 registrou um recorde de inscrições que mencionavam o uso de IA. Esse salto não é à toa; trata-se de um reflexo do entusiasmo (e da pressão) em torno do uso da inteligência artificial em contextos criativos.
Mas, no dia a dia das agências, a realidade é um pouco diferente. Embora a maioria dos profissionais já tenha ouvido falar - e muitos já tenham testado ferramentas generativas - o uso consistente e estratégico da IA no trabalho criativo continua em construção.
Não por acaso: a criatividade é, de fato, um terreno sensível. Por anos, o “andar da Criação” era inacessível para profissionais de outras áreas. E, para alguns, ainda existe o receio de que a IA comprometa ou substitua a autoria humana.
Mergulhamos nesse debate durante a primeira sessão do Martech Council, projeto de Gustavo Portes, Head de Data, Measurement and Programmatic; Jean Silva, Head of Google Marketing Platform Sales; José Torga, GMP Enterprise Sales Partner Manager; e Luciana Costa, Data Transformation Lead Agencies and Partners do Google Brasil. A iniciativa faz parte do Exchange ClubHouse, uma série de conversas exclusivas entre C-levels e especialistas das principais agências do mercado, realizadas no Partnerplex, na sede do Google Brasil.
Nesse primeiro debate, liderado por Annelize Conti, Content Architect do Google Brasil, Danilo Futema, Creative Director do Google Brasil, e Renato Nobre, Senior Innovation Advisor também do Google Brasil, ficou claro que é possível olhar para o cenário atual sob uma perspectiva diferente.
“A IA não substitui a criação. Ela amplia nosso repertório, acelera conexões e pode, intencionalmente, ajudar a reduzir nossos vieses cognitivos. A gente deixa de depender só do que está na nossa mente e começa a acessar um repertório muito mais expandido", explica Danilo Futema, Creative Director & Creative Effectiveness Lead do Google Creative Works.
“A IA não substitui a criação. Ela amplia nosso repertório, acelera conexões e pode, intencionalmente, ajudar a reduzir nossos vieses cognitivos” - Danilo Futema
Portanto, longe de reduzir a criatividade, a inteligência artificial pode atuar como uma aliada estratégica: ajuda a reduzir ruídos entre briefing e entrega, expande repertórios e acelera processos, sem abrir mão da essência criativa que conecta marcas e pessoas.

Criatividade: antes e depois da IA
Antes de entender como a inteligência artificial pode transformar o trabalho criativo, vale olhar para o que, de fato, define a criatividade. Vamos pensar pela perspectiva da neurociência: criatividade é o resultado da interação entre repertório acessível, capacidade de processamento neural e viés cognitivo.
Em outras palavras, quanto mais experiências e referências você consegue acessar e combinar, maior seu potencial criativo – desde que não seja limitado por bloqueios e vieses inconscientes.

A inteligência artificial impacta diretamente essas três dimensões. Ferramentas generativas expandem exponencialmente o repertório acessível, aceleram o processamento de ideias ao conectar pontos distantes e ajudam a reconfigurar vieses, oferecendo novas perspectivas que talvez não surgissem em uma abordagem puramente humana.

Assim, conseguimos chegar a um processo criativo muito mais fluido, ágil e diverso, capaz de gerar soluções mais alinhadas ao contexto atual e às expectativas dos clientes. Podemos, então, dar o próximo passo e descer para a execução.

IA na construção de um briefing tunado
Uma das maiores dores no processo criativo é o desalinhamento de expectativas logo na etapa inicial de um projeto: o briefing. A “guerra de repertórios" é real e acontece no desencontro entre o que o cliente pede e o que nós, do lado da execução, entendemos. Isso é normal, afinal, cada profissional carrega experiências e referências distintas. Fato é que esse cabo de guerra gera ineficiências que, muitas vezes, se traduzem em semanas ou meses de retrabalho.
Assim como um bom prompt é essencial para que ferramentas de IA gerem resultados relevantes, um briefing claro e bem estruturado é fundamental para as equipes criarem com mais precisão e consistência. É aqui que a inteligência artificial pode atuar como uma aliada valiosa, apoiando três etapas cruciais do processo:
- Sintetizar: tornar o repertório acessível e digerível, transformando grandes volumes de informação em briefings estruturados e práticos. Ferramentas como o NotebookLM permitem organizar esse conteúdo em frameworks que facilitam a compreensão por todos os envolvidos.
- Expandir: ampliar o pensamento e desafiar vieses, auxiliando a reimaginar personas, consumidores, marcas e creators. Essa etapa permite explorar possibilidades fora dos estereótipos — por exemplo, criando heróis mais diversos, reimaginando uma marca tradicional com tom de voz de startup ou redesenhando perfis de creators da Geração Z e shoppers.
- Refinar: adicionar camadas, texturas e elementos ao pedido, tornando o briefing mais inspirador e alinhado ao público. Isso inclui prototipar visualmente (com imagens e vídeos gerados por IA), transformar o briefing em um podcast (Briefing Cast) ou reescrever a missão para diferentes audiências - de designers a tech creators - com adaptações de linguagem para aumentar o engajamento.
O desafio, que a IA consegue superar muito bem, é reduzir o ruído entre o pedido e a execução criativa, alinhando repertórios de forma mais rápida e eficiente. Esse processo reconfigura o viés cognitivo ao introduzir novas perspectivas, transforma o repertório em algo acessível e acionável e acelera o processamento de ideias. São as condições perfeitas para a criatividade humana brilhar com o apoio da inteligência artificial.

No more “one big idea”
Lembra daquela história de que o “andar da Criação” era intocável, guardião exclusivo das ideias? Essa dinâmica vem mudando – e isso é uma boa notícia. Em primeiro lugar, vale dizer que não existe mais uma única e universal "big idea", capaz de resolver todos os problemas de comunicação de uma marca.
Por um lado, porque os públicos são múltiplos e diversos e uma única mensagem dificilmente conversa com todos. Por outro, porque a tecnologia hoje permite criar, testar e ajustar hipóteses criativas em tempo real.
"A IA entra nesse momento como uma ferramenta para explorar essas variações. Vamos deixar de trabalhar com aquela única ideia salvadora e partir para processos mais diversos, mais vivos, com múltiplas soluções", reforça Futema.
Nesse novo cenário, a criação também deixa de ser o núcleo exclusivo das ideias. Outras áreas, que antes só cuidavam de uma etapa do processo, conseguem, agora, tangibilizar as ideias com mais facilidade. Mas, segundo Danilo Futema, essa não é uma mudança tão nova assim.
“Esse movimento já vinha acontecendo antes mesmo das ferramentas de IA. As equipes de estratégia já estavam migrando para uma abordagem mais criativa; os times de dados, por exemplo, se tornando ‘creative data’. Agora, essa quebra de silos está se acelerando, porque a prototipagem foi democratizada”.
“A quebra de silos está se acelerando, porque a prototipagem foi democratizada” - Danilo Futema

Em vez de resistência, o caminho é olhar para a tecnologia como oportunidade. Com a IA, os criativos podem se abrir para novas linguagens, ferramentas e possibilidades, tornando-se curadores e articuladores de ideias em um ambiente muito mais fluido.
O papel da liderança, de agora em diante, é encorajar essa colaboração interáreas e promover uma cultura de experimentação contínua (com uso de inteligência artificial). Não é sobre substituir a criatividade humana, mas de expandir seu alcance e suas possibilidades.
Como provocou um dos participantes do encontro: o diferencial das agências no futuro não será a capacidade de automatizar entregas; isso, as máquinas já fazem. Será a capacidade de conectar tecnologia, estratégia e significado, criando experiências fantásticas para marcas e públicos em constante transformação.
Este artigo foi produzido a partir do primeiro encontro do Martech Council no Exchange ClubHouse, uma série de conversas entre CEOs e especialistas das principais agências do mercado, realizadas no Partnerplex, na sede do Google Brasil. O tema da edição foi a transformação da criatividade com o uso da inteligência artificial nas agências.
Colaboraram com este conteúdo: Adriano Nadalin, Dora Oliveira e Vinicius Canola (WMS/iCherry); Willie Taminato e Denis Ribeiro (EssenceMediacom); Bruno Miracco e Daniel Diniz (AlmapBBDO); Carlos Lopes e Rodolfo Tourinho (Monks); e Guido Sarti (Galeria); Thiago Bacchin e Adilson Batista (Cadastra); Fernando Teixeira (Suno/Koro); Thiago Cassemiro (Publicis); Guilherme Mamede (Accenture Song); Fabio Saad (BETC Havas); e Leo Naresi (DP6).